quinta-feira, 2 de abril de 2015

Um gesto, muitas lições: desdobramentos do lava-pés na vida cristã


Por Frei Gustavo Medella, ofm

Quinta-feira da Semana Santa. Missa vespertina da Ceia do Senhor. Lava-pés. A abertura do Tríduo Pascal, ao mesmo tempo que insere os cristãos no núcleo dos mistérios da fé, traz um resumo da lição de amor-serviço ensinada pelo Mestre Jesus. Os próprios elementos do texto bíblico e da liturgia levam o fiel a percorrer o caminho que parte da caridade e chega à plenitude da Ressurreição, passando antes pela entrega total na cruz. Esta reflexão quer olhar com atenção para o primeiro passo do Tríduo Pascal, especialmente o lava-pés, apontando para alguns elementos em torno deste gesto, que traduz simbolicamente toda ação e pregação de Jesus Cristo.
O primeiro passo será a contextualização do episódio dentro do quadro da Semana Santa. Em seguida, serão expostos e comentados alguns passos do lava-pés descritos no texto bíblico do Evangelho de São João. A liturgia da Missa vespertina, a necessidade de se deixar lavar os pés pelo Senhor, o ministério do sacerdote, os atos-atitude de serviço e o amor de São Francisco pelo ensinamento do lava-pés também fazem parte desta reflexão.
Trata-se apenas de um percurso possível, diante da infinidade de caminhos que a riqueza do gesto de Jesus oferece. Cada leitor pode, a partir das provocações aqui apresentadas, construir seu próprio itinerário na vida de fé, no seguimento de Jesus e na prática do amor-serviço.
1. O texto de João 13 no quadro da Semana Santa: a véspera do grande serviço de Jesus
 “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). O início do texto já se refere à “hora” em que Jesus passaria deste mundo para o Pai. Trata-se de uma referência à entrega total na cruz do “Filho do Homem” (cf. Jo 3,14).
De acordo com Alviero Niccaci e Oscar Battaglia[*], o capítulo 13 marca o início da seção na qual Jesus, antes de sua “hora derradeira”, passa os últimos ensinamentos a seus seguidores. “Quem fala nesses discursos não é um homem na véspera de sua morte, trêmulo e perdido, mas o Mestre e Senhor, que com plena consciência vai ao encontro da vontade do Pai”.
Ainda segundo os mesmos autores, o gênero literário deste trecho, que começa no capítulo 13 e se estende até o 17, parece o dos “discursos de adeus”. Seria uma espécie de “testamento espiritual de um grande personagem que, nas vésperas da morte, reúne junto a si filhos ou seguidores, anuncia-lhes a sua próxima partida, consola-os da tristeza que vão sentir, recorda-lhes quanto Deus realizou por seu intermédio, convida-os a permanecerem unidos na obediência a seus mandamentos, prevê perseguições para o futuro, mas assegura a vitória final sob a guia de seu sucessor”.
2. Os passos do lava-pés no texto bíblico de Jo 13,1-15
O texto começa situando temporalmente o episódio: “Antes da festa da Páscoa…”. Seria, segundo alguns estudiosos, o 13 de Nisan (março-abril), primeiro mês do calendário hebraico. Outro elemento de destaque neste primeiro versículo é a perfeita consciência de Jesus acerca dos últimos momentos de sua missão: “Sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai”.
Com relação ao trecho “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”, a nota explicativa da Bíblia de Jerusalém aponta: “Pela primeira vez, João coloca explicitamente a vida e a morte de Jesus sob o sinal do amor que ele tem aos seus”.
No segundo verso, dois aspectos importantes: o primeiro aparece na partícula “durante a ceia”, estando Jesus reunido com os seus em refeição, que simboliza cumplicidade, partilha e comunhão; em seguida, a afirmação de que o “diabo colocara no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, o projeto de entregá-lo” chama atenção para o fato de que o poder diabólico pode agir por detrás dos homens.
Sobre a passagem “sabendo que o Pai tudo colocara em suas mãos e que ele viera de Deus e a Deus voltava” (v.3), Niccaci e Battaglia comentam: “Entre Jesus e Deus há uma relação de amor que se exprime, por parte do Pai, no dom dos poderes reais sobre todos os homens. Com tal consciência o Cristo se encaminha para a morte como para sua entronização real; mas a sua realeza se atua através do serviço, como sugere o lava-pés”.
Nos versículos 4 e 5, há a descrição do ato de Jesus: “Levanta-se da mesa, depõe o manto e, tomando uma toalha, cinge-se com ela. Depois coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha que estava cingido”. Jesus tem o poder de dar a sua vida e de depois retomá-la. O gesto de depor o manto remete à morte de Jesus. Cingir-se com uma toalha e lavar os pés eram ações próprias dos escravos (cf. 1Sm 25, 41). No caso do episódio narrado, o Senhor e Mestre é quem assume esta função e a explicação desta iniciativa aparece mais adiante, na conclusão da passagem evangélica.
A narrativa segue e retrata agora o diálogo entre Simão Pedro e Jesus (v. 6-10). “Chega, então a Simão Pedro, que lhe diz: ‘Senhor, tu, lavar-me os pés?!’ Respondeu-lhe Jesus: ‘O que faço, não compreendes agora, mas o compreenderás mais tarde’. Disse-lhe Pedro: ‘Jamais me lavarás os pés’. Jesus respondeu-lhe: ‘Se eu não te lavar, não terás parte comigo’. Simão Pedro lhe disse: ‘Senhor, não apenas meus pés, mas também as mãos e a cabeça’. Jesus lhe disse: ‘Quem se banhou não tem necessidade de se lavar, porque está inteiramente puro. Vós também estais puros, mas não todos’”.
Em suas respostas, Pedro oscila entre a recusa e o entusiasmo, ambas atitudes marcadas pela nebulosidade de uma certa incompreensão. No primeiro momento, não compreende o gesto de Jesus, excluindo-se da comunhão com o Mestre e da participação no discipulado. Diante do alerta de Cristo, muda de ideia, mas ainda demonstra uma compreensão parcial, encarando o lava-pés como simples purificação. Mais uma vez Jesus o esclarece.
O final da narração e a explicação dos gestos aparecem nos versículos 12 a 15.  “Depois que lhes lavou os pés, retomou o seu manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais de Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, vós também o façais’”.
Se a deposição do manto faz referência à morte, sua retomada acena para a ressurreição. A mensagem do lava-pés é, portanto, ação simbólica do serviço. É o legado de Cristo aos seus. O Senhor e Mestre deu o exemplo e deixou a instrução a quem quiser segui-lo.
 3. A liturgia de lava-pés
Conforme dito anteriormente, a Missa vespertina da Ceia do Senhor, da qual faz parte o lava-pés, marca a abertura do Tríduo Pascal. Logo no início, na antífona da entrada, aparecem dois elementos fundamentais de todo o mistério celebrado no tríduo: “Acruz de nosso Senhor Jesus Cristo deve ser a nossa glória: nele está nossa vida e ressurreição; foi ele que nos salvou e libertou” (cf. Gal 6,14) (grifo do autor). Percebe-se, desde já, que na cruz Jesus presta seu grande serviço ao gênero humano: a salvação e a libertação.
A celebração deste dia é marcada pelo contraste. A cor litúrgica, o branco, simboliza a pureza, a alegria, a vitória. No canto do “Glória”, rompe-se momentaneamente a austeridade quaresmal e os sinos soam com badaladas solenes, acompanhados pelos instrumentos, que logo em seguida vão se calar. Recomenda-se que, após o hino de louvor, todos os cantos sejam executados a capela, permanecendo esta prescrição até o Aleluia festivo da Vigília Pascal, quando se dá a explosão de alegria na Ressurreição.
Na oração da coleta, o sacerdote, em nome de toda assembleia, reza: “Ó Pai, estamos reunidos para a santa ceia, na qual o vosso Filho único, ao entregar-se à morte, deu à sua Igreja um novo e eterno sacrifício, como banquete do seu amor. Concedei-nos, por mistério tão excelso, chegar à plenitude da caridade e da vida”. A Ceia do Senhor, o banquete do amor no qual Jesus se entrega, é o grande serviço que Ele presta aos seus. Lavada em Cristo, a Igreja deseja alcançar a totalidade da vida e não tem dúvidas de que para tanto o único caminho é o do serviço gratuito e amoroso.                           .
De acordo com a sequência prevista, o lava-pés propriamente dito vem depois da homilia, na qual o presidente, de acordo com o que prescreve o Missal Romano, deve focalizar “os principais mistérios celebrados por esta Missa (a instituição da Sagrada Eucaristia e do sacerdócio, e o mandamento do Senhor sobre a caridade fraterna)”. Trata-se de um gesto marcante. Neste momento, o sacerdote depõe a casula (que na maioria das vezes é dourada) para cingir-se com uma toalha e lavar os pés daqueles que representam os apóstolos.
Diz o Missal: “Os homens escolhidos são levados pelos ministros em lugar conveniente”. A escolha destes homens não deveria se pautar no acaso ou na praticidade. Seria muito conveniente que, dentre os escolhidos, estivessem representantes autênticos dos “últimos” da sociedade: empobrecidos, órfãos, desempregados, prisioneiros, doentes, idosos abandonados… Todos precisam ser lavados em Jesus, mas estes devem ser os primeiros beneficiados pelo serviço dos cristãos. Seguir a Cristo significa também lavar os pés de todos eles.
Segue-se a Missa, a partir da Oração do Fiéis. Sugere-se também que se faça uma procissão com donativos para os pobres. A antífona prevista para este momento, caso ocorra, é: “Onde o amor e a caridade, Deus está”.
Depois da comunhão, o presidente reza: “Ó Deus todo-poderoso, que hoje nos renovastes pela ceia do vosso Filho, dai-nos ser eternamente saciados na ceia do seu reino”. Terminada a oração, procede-se a trasladação do Santíssimo Sacramento, que nesta noite é colocado em um local à parte para adoração. Não há bênção final. Os fiéis são convidados pelo Senhor para orar e vigiar (Mt 26,38).
Durante a procissão com o Santíssimo, pode-se entoar o hino “Canta, Igreja” que, em sua terceira estrofe diz: “Celebrando a despedida com os doze ele ceou. Toda Páscoa foi cumprida, novo rito inaugurou. E seu corpo, pão da vida, aos irmãos ele entregou”.
O Missal Romano prescreve como última instrução: “Os fiéis sejam exortados a adorarem o Santíssimo Sacramento, durante algum tempo da noite, segundo as circunstâncias do lugar. Contudo, após a meia-noite, esta adoração seja feita sem nenhuma solenidade”.
4. Ter os pés lavados por Jesus: condição para ser discípulo
 “Disse-lhe Pedro: ‘Jamais me lavarás os pés’. Jesus respondeu-lhe: ‘Se eu não te lavar, não terás parte comigo’”. (Jo 13,8). Mais uma vez evocamos o diálogo entre Jesus e Pedro. Deixar-se lavar por Jesus é condição indispensável para a comunhão com o Mestre, um desafio, um constante exercício de conversão. Exige humildade e comprometimento do discípulo.
No batismo, o ser humano é lavado em Jesus Cristo. Porém, na caminhada da vida, muitas são as “poeiras” que se aderem aos pés daqueles que caminham. Neste momento, se faz necessária o encontro muito íntimo com o Cristo do lava-pés, que deve limpar o coração humano do egoísmo, da ganância, do desânimo e de toda espécie de mal. Todos precisam ser lavados.
Neste processo de purificação/conversão contínua, algumas atitudes são fundamentais e o Salmo 50 (Sl 50, 3-10) oferece um itinerário consistente:
a) Implorar a Misericórdia de Deus (vv. 3-4). É o reconhecimento diante do Pai todo-poderoso, rico em compaixão.
 b) Identificar as sujeiras (vv. 5-7). Deus conhece cada um de seus filhos por inteiro (Sl 138). O autoconhecimento torna-se, portanto, um descortinar-se diante do Pai amoroso. Trata-se de um exercício de humilde busca daquele que deseja ser lavado por Jesus. Mergulhar profundamente no próprio interior para descobrir aquilo que vem atrapalhando a relação com Deus e com o próximo: egoísmo, orgulho, comodismo.
c) Reconhecer o amor de Deus e deixar-se lavar pelo Pai (vv.8-9). Restitui-se a Deus o que é de Deus (Mt 22,21). Aquele que ama seus filhos vem ao socorro deles: lava-os e purifica-os.  Converte seus corações de pedra em corações de carne (cf. Ez 36,26). Mudar o coração significa mudar-se por inteiro, aguçar a sensibilidade. O coração de pedra é duro, inflexível não sabe perdoar, vive só. O coração de carne é pulsante, vivo, capaz de se dilatar para acolher e amenizar as grandes dores humanas.
d) Alegrar-se com as maravilhas operadas pelo Senhor (v. 10). O Filho sente-se amado porque lavado pelo Pai. Jesus Cristo quer lavar sempre todos aqueles que seguem seus passos. Ter os pés lavados pelo Mestre é condição indispensável para o discípulo.
5. Quinta-feira da semana santa é o dia do padre: homem do serviço
O convite de Jesus à prática do lava-pés é para todos. “O mesmo Senhor porém instituiu alguns como ministros entre os fiéis, para que estes se unissem num só corpo, em que ‘todos os membros não desempenham a mesma atividade’ (Rom 12,4). Tais ministros deviam assumir o poder sagrado da Ordem, na comunidade dos fiéis, para oferecerem o Sacrifício e perdoarem os pecados, exercendo ainda publicamente o ofício sacerdotal em favor dos homens e em nome de Cristo”. (Decreto Presbyterorum Ordinis, 1243).
O sacerdote é ordenado para o serviço do povo de Deus. O papa, além de “Santo Padre”, “Sumo Pontífice”, traz entre seus diversos atributivos o de “Servo dos Servos de Deus”, expressão muito cara a João Paulo II que também já foi utilizada por Bento XVI.
Ao descrever o ministério sacerdotal, o Papa João Paulo II, na “Carta aos sacerdotes por ocasião da Quinta-feira santa de 1996”, destaca: “O sacerdote torna-se, assim, participante de tantas decisões da vida, de sofrimentos e alegrias, de esperanças e desilusões. Em cada situação, a sua função é mostrar Deus ao homem, como o fim último de sua existência pessoal. O sacerdote torna-se aquele a quem as pessoas confiam as coisas mais íntimas e os seus segredos, por vezes tão dolorosos. Torna-se o desejado dos enfermos, dos idosos e dos moribundos (…) O sacerdote, testemunha de Cristo, é mensageiro da vocação suprema do homem à vida eterna em Deus. E enquanto acompanha os irmãos, prepara-se a si mesmo: o exercício do ministério permite-lhe aprofundar a sua própria vocação de dar glória a Deus para tomar parte na Vida Eterna”.
Debruçando-se sobre a dimensão sacramental do exercício do sacerdote, percebe-se que ela permeia todas as etapas da vida. Conforme aponta João Paulo II, o padre, e com ele toda a Igreja, participa ativamente da história dos fiéis e de suas famílias, sempre a serviço.
O Batismo, próprio do início da primeira infância, é a porta de entrada para a Vida em Cristo. Na celebração da Eucaristia, torna presente o próprio Cristo, feito Pão para viver com os homens. O sacramento da Reconciliação é o sacramento da volta, do retorno ao Pai, na contínua conversão. Há também o matrimônio, que marca a decisão de dois adultos que se amam e se unem, para formar uma só carne, tendo como testemunha o sacerdote. Na unção dos enfermos, mais uma vez a ação do ministro de Deus oferece conforto e alento ao doente. Percebe-se, então, a presença real e atuante do sacerdote, o homem do serviço nos diversos momentos da existência humana.
O padre não é um “super-homem”, isento de falhas e enganos. Mas deve, sobremaneira, ser uma presença de serviço. Tomar parte da vida do povo e, a partir da motivação divina, ter um coração alargado, solidário, pulsante, capaz de participar nas decisões da vida das pessoas, não com a distância e a imparcialidade de um juiz, mas proximamente, à maneira de um irmão.
O serviço amoroso é fecundo e se expande. Como diz São Tomás de Aquino “O Bem é difusivo”. Oxalá todos os sacerdotes, religiosos ou diocesanos, do campo da cidade, sejam transmissores fiéis e dedicados do Bem Maior, que é Deus.
6. Serviço: atos e atitude
O exemplo do lava-pés caracteriza-se por uma ação pontual e simbólica de Jesus Cristo. Envolve uma série de passos práticos: levantar-se, tirar o manto, cingir-se com a toalha, tomar a jarra com água e a bacia, lavar os pés dos discípulos. Diversos atos em função de uma atitude. Apesar do conjunto (atitude) parecer mais importante do que as partes (atos), eles não sobrevivem isoladamente. Os atos sem atitude tornam-se ações mecânicas, passageiras. A atitude sem atos também não sobrevive, porque se revela estéril. A relação é recíproca.
No caso de Jesus Cristo, cada etapa do gesto era impulsionada pela atitude fundamental de Deus: estar a serviço do homem. O cristão precisa, desta maneira, mergulhado no ensinamento que vem do alto, colocar-se por inteiro nas ações de promoção da vida, e vida em abundância (cf. Jo 10, 10). Para cumprir este propósito, o seguidor de Jesus Cristo tem nas “Obras de Misericórdia” uma lista de atos que apontam para a atitude do serviço e oferecem respostas pontuais ao cenário de desigualdade que se apresenta diante dele:
a) Obras Corporais de Misericórdia
 Dar de comer a quem tem fome – Estima-se que, no Brasil, cerca de 16,2 milhões de pessoas vivem em situação de absoluta miséria, sem ter o que comer.
Dar de beber a quem tem sede – No sertão Nordestino, nas favelas, no entorno das grandes metrópoles, a falta de água potável é um flagelo que castiga milhões de brasileiros.
Vestir os nus – Despidos da dignidade, há uma multidão à espera de se proteger nos trajes do respeito e do reconhecimento enquanto seres humanos.
Dar pousada aos peregrinos – São pessoas sem chão e, consequentemente, sem identidade, que vagam sem perspectivas.
Visitar os enfermos e os encarcerados – Eles não têm possibilidade de locomoção. Nas cadeias, nos hospitais, nas filas do SUS, sofrem pela solidão, pelo abandono, esquecimento.
Remir os cativos – Neste caso são os prisioneiros das drogas, os trabalhadores explorados, as vítimas da ganância e da opressão que clamam por liberdade.
Enterrar os mortos – O respeito ao ser humano ultrapassa as barreiras da vida e da morte e deve ser sempre salvaguardado.
b) Obras Espirituais de Misericórdia
 Dar um bom conselho – Em uma sociedade desacostumada a ouvir, aconselhar com propriedade e prudência torna-se um serviço desafiador e importante.
Instruir os menos esclarecidos – Esclarecer significa clarear, trazer à luz. Não é um gesto de domínio de quem pode mais, mas um exercício de humildade e comprometimento.
Corrigir os que erram - Paciência é a virtude principal desta ação, que deve ser repleta de carinho e interesse pelo próximo.
Consolar os aflitos ­ – Oferecer o ombro amigo àqueles que padecem as dores da angústia e da aflição.
Perdoar as injúrias – O exercício do perdão confere qualidade de vida a quem perdoa e a quem é perdoado. Perdoar deixa a alma limpa, lavada, livre de sentimentos negativos que tornam a vida mais complicada.
Suportar pacientemente as fraquezas do próximo – Quanto mais próximo é o próximo, mais suas fraquezas aparecem. Limites, todos os têm e, diante deles, a compreensão é a melhor aliada.
Rezar pelos vivos e falecidos – A fé é o grande combustível da vida cristã. Rezar pelos outros é lembrar que Deus ama a todos.
Tanto as obras corporais quanto as espirituais remetem para a atitude do serviço. Assumi-las como cristão comprometido significa assumir um projeto de vida no qual se chega a Deus por intermédio dos irmãos. Todo ser humano, sem exceção, é carente e necessita ser contemplado pelas obras de misericórdia, que levam em conta as necessidades básicas de toda e qualquer pessoa.
7. Lava-pés: tema caro a Francisco de Assis
Na qualidade de seguidor fidelíssimo de Cristo, São Francisco de Assis não poderia deixar de lado em seus escritos e em sua vida a lição número um do Mestre. Frequentemente o Poverello recorre, direta ou indiretamente, ao lava-pés para orientar seus frades e imbuí-los do espírito de serviço. O próprio nome da Ordem fundada por Francisco (Ordem dos Frades Menores) traduz a perfeita consonância entre a inspiração do santo e os desígnios divinos.
Muitas são as passagens que corroboram esta profunda sintonia. Entre elas, as instruções que São Francisco dava a seus seguidores com relação à lida com o poder. Este deveria ser sempre, incondicionalmente, o “poder de servir”.
Na história da Ordem Franciscana, o rápido aumento do número de irmãos exigiu a adoção de certos procedimentos para a organização. Houve, desta forma, o surgimento das figuras dos ministros, custódios e guardiães, nomenclatura utilizada até hoje. Cabe ressaltar que São Francisco encarava a noção de poder obrigatoriamente ligada às ideias de serviço e cuidado. Quem exerce um cargo, não deve dele se apropriar, conforme aparece nas Admoestações:
“Não vim para ser servido, mas para servir (cf. Mt 20,28), diz o Senhor. Aqueles que foram constituídos acima dos outros, se gloriem tanto deste ofício de prelado como se tivessem sido destinados para o ofício de lavar os pés dos irmãos. E se mais se perturbam por causa do ofício de prelado que lhes foi tirado que por causa do ofício de lavar os pés, tanto mais ajuntam para si bolsas para perigo da Alma (Adm 4, 1-4)”.
Conforme o trecho, percebe-se que a tônica do exercício do cargo não está atrelada a nenhum privilégio pessoal, mas na obrigação de servir aos irmãos. O desprendimento também é uma exigência. Quem exerce determinada função, não deve se apegar a ela e, caso lhe seja tirado o ofício, isto não deve ser motivo de perturbação.
No mesmo texto das Admoestações, São Francisco adverte seus frades a fim de que não se iludam ou se ensoberbeçam por elogios e aplausos no exercício de suas atividades. “Bem-aventurado o servo que não se considera melhor quando é engrandecido e exaltado pelos homens do que quando é considerado insignificante, simples e desprezado, porque, quanto é o homem diante de Deus, tanto é e não mais. (…) E bem-aventurado o servo que não é colocado no alto por própria vontade e que sempre deseja estar sob os pés dos outros” (Adm 19, 1-3.4)
Considerando-se ínfimo diante do Altíssimo, o frade deve colocar-se por inteiro na dinâmica do serviço e não deve se iludir com as “glórias humanas”. A posição social, neste caso, torna-se secundária e a prioridade passa a ser, a partir do que prescreve São Francisco, a ocupação dos últimos lugares.
A ideia de não apropriação também aparece na Regra não Bulada. “E nenhum ministro ou pregador se aproprie do ministério dos irmãos ou do ofício da pregação, mas, em qualquer hora em que lhe for ordenado, sem qualquer objeção, deixe seu ofício” (RnB 17, 4). Não obstante às recomendações de humildade no exercício dos ofícios e funções dos irmãos indicados para os mesmos, São Francisco exige, de toda a fraternidade, respeito e reverência aos prelados, conforme indica na Regra Bulada. “Todos os irmãos devem ter sempre um dos irmãos desta Religião como ministro geral e servo de toda a fraternidade e estejam firmemente obrigados a obedecer-lhe” (RB 8,2).
Francisco adota, portanto, uma postura de cautela e equilíbrio diante do poder. Sabe que a organização é necessária para qualquer grupo humano, mas previne seus irmãos a fim de que não se deixem escravizar pelas estruturas. Certamente estas instruções brotam de alguém que soube ouvir, compreender e praticar o verdadeiro Espírito do Evangelho, do Lava-pés.
8. Conclusão
Esta reflexão certamente não trouxe grandes novidades. Apenas procurou nas fontes clássicas (Sagrada Escritura, Missal Romano, Documentos do Concílio Vaticano II, Escritos de São Francisco, etc.) indicações que possibilitem um contato mais estreito com a lição de serviço ensinada por Jesus. O objetivo primeiro foi haurir do episódio do lava-pés alguns elementos que auxiliem o seguidor de Cristo em sua vida prática. A expectativa é de que este texto tenha sido um pequeno subsídio de reflexão para melhor vivência dos mistérios da Semana Santa. 

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